O RITUAL
Bem à hora combinada, Rei Albe, o Rico, conseguiu chegar à clareira do
Bosque do Iludido, no Vale do Apertado. Compromisso igualmente cumprido pela
Feiticeira Zuzu, poucos minutos depois. Não apeou da mula, permanecendo montado,
segurando uma grande cesta de palha e cipós trançados cheia de frutas secas diversas,
até ouvir pelo rangido que se aproximava uma carroça velha.
“É ela”, pensou e logo avistou a Sacerdotisa das Sombras, exclamando:
— Até que és uma feiticeira pontual! Cumprindo a hora combinada! Pensei
que fosses ficar de graça com minhas esmeraldas, sem me dar em troca pelo pagamento!
– gracejou, ironizando.
— Senhor Rei, apeie logo de sua mula e faça o favor de descarregar o que eu
trouxe na carroça. Preciso de tudo aquilo aqui, neste local, para executar o trabalho!
Pela primeira vez, Rei Albe, o Rico, cumpriu, sem pestanejar, ordens de outra
pessoa que não fosse a Rainha Alzira. Até ela, raras vezes, o mandava tomar banho;
algumas vezes, trocar de roupas e muitas vezes, parar de comer. Meio irritado com a
quantidade de trastes, cacarecos, bundás, quinquilharias, porcarias, buzugos e butucuns
que já descarregara da carroça, sem saber para que serviriam, Rei Albe, o Rico,
exasperou-se:
— A Senhora veio fazer um feitiço ou está de mudança? Comece logo pela
parte que me interessa, porque não quero sair daqui depois da meia-noite!
— Garanto que meia-noite em ponto o serviço tará feito. Feit ’sso, o Senhor
Rei espere só pra ver o resultado.
Enquanto o rei descarregava os inumeráveis itens da carroça, a Sacerdotisa das
Sombras cuidava pessoalmente da preparação do local, arrumando lenha para acender
fogueira, pendurando pedaços de fitas vermelhas nos galhos ao redor das árvores,
colocando cada coisa em lugar próprio.
Quando a Lua despontou, incidindo luminosidade por entre as rareadas árvores
da clareira no Bosque do Iludido, delimitou os contornos das sombras reveladas pelo
clarão entre as ramagens da figueira-do-inferno. Quatro elementos, dois humanos e dois
animais, movimentavam-se naquele soturno cenário. Antes que acendesse a fogueira
sob a frondosa árvore, ouviu-se o piado lúgubre do pássaro Urutau – um quinto
componente que não era esperado para a taciturna celebração.
Sonoramente inadequado para o momento, soara aos ouvidos da Sacerdotisa
das Sombras como um mau agouro, sinalizando que suas invocações ocultas e a
intermediação das chamadas forças telúricas pressagiavam o pior, prognosticando
resultado desfavorável. Diante daquela simbólica advertência, a feiticeira recuou,
intencionada a adiar a sequência do ritual, resguardando-se de que o Rei Albe pudesse
lhe aplicar alguma reprimenda se o resultado pretendido não fosse alcançado e o
alertou:
— Ouviste o chora-lua? É um mau agouro. Sinal de que nem tudo pode dar
certo. Ainda assim, queres que eu continue?
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— Não acredito em mau agouro, senhora feiticeira, nem tenho medo do piado
de um passarinho bobo. Afinal, viemos aqui pra quê? Além do mais, já vos paguei, não
paguei? Então cumpra com o trato – asseverou o rei.
— Não digas depois que não avisei. É preciso que me obedeças, ouviste? –
Exortou-o, seriamente.
Feiticeira Zuzu, mulher simetricamente volumosa, aparentava menos de 35
anos, embora já tivesse um filho nessa idade, de cabelos negros compridos, um tanto
desalinhados, boca carnuda, bons dentes, fartos seios e grande traseiro, logo se desfez
de suas andrajosas vestes, se comparadas às do rei, com a naturalidade de quem
estivesse sozinha. Ordenou que Rei Albe também se despisse. O rei sentiu-se um tanto
retraído. De início, pouco à vontade, não era acostumado a desnudar-se perante outros, a
não ser diante da Rainha Alzira ou do seu alfaiate, ainda que não lhe assentasse o
qualificativo de recatado ou pudico. Contudo, predispôs-se a obedecer. Também
pressentira no piado sinistro do Urutau um aviso de cuidado. Precisava, no entanto,
levar adiante seu intento, pago antecipado, ao custo, nada modesto, de algumas das suas
mais preciosas esmeraldas.
Sem dispensar os préstimos da Sacerdotisa das Sombras, despiu-se
primeiramente do pudor e pouco se deu que ela reparasse no avantajado tamanho de seu
falo, ainda que em estado de repouso. Parecendo de início pouco à vontade, quando
começou a movimentar-se livremente, sem o incômodo das excessivas e excêntricas
vestes reais, Rei Albe, o Rico, mostrando descontração, transgrediu o tom de solenidade
que a feiticeira revestia à circunstância, questionando, meio gaiato:
— E a minha Mula Tá, pode continuar vestida?
Feiticeira Zuzu fingiu que não escutou, escarafunchando todos os cacaréus
trazidos e empilhados ao lado do círculo que traçara no chão, com a ponta da sua adaga
de prata. Não encontrando uma corda tecida especialmente para a ocasião, com embiras
de bananeira, necessária à demarcação do espaço ritual para a efetiva função da
cerimônia, ordenou ao Rei Albe, o Rico:
— Vou precisar do bridão ou do cabresto da tua besta, seu Rei – disse, já
mandando-o despojar a Mula Tá daquele rico acessório, parte indispensável do conjunto
do arreamento, entremeado de reluzentes fios de ouro, ligado à cabeçada de couro com
incrustação de preciosas esmeraldas.
— Por que não pegas o do teu pangaré? – propôs Rei Albe, o Rico, ciumento.
— Por que o trabalho não é pra mim... É pra tu! – contrapôs, resoluta, a
feiticeira.
Demarcando, com as rédeas da Mula Tá, o espaço circular para iniciar a sessão
ritual de magia, bem debaixo da frondosa árvore da figueira-do-inferno, onde a besta,
irrequieta, permanecia amarrada pelo cabresto, Feiticeira Zuzu, a Sacerdotisa das
Sombras, desenhou no chão umas garatujas sobre outras, reproduzindo um emaranhado
de riscos, sobre os quais cravou seu punhal de prata, deixando-o enterrado naquele chão
de terra arenosa.
Observando atentamente todos os movimentos da Sacerdotisa das Sombras, o
rei percebeu que aquelas linhas traçadas com a ponta do punhal no centro do círculo
eram familiares. Num gesto instintivo, olhou a palma da sua mão esquerda e viu
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traçadas, no chão, as mesmas linhas, com a mesma simetria, num desenho incrivelmente
idêntico, às linhas das suas mãos.
Rei Albe, o Rico, surpreendeu-se. Sentiu que não estava lidando apenas com
uma amadora ou charlatã. Algo nela o inquietou. Atemorizado, resolveu obedecê-la.
A carocha iniciou a cerimônia pronunciando palavras que o rei ainda não
ouvira, numa espécie de cantilena soturna, monótona, por vezes melancólica, puxando-o
com energia para dentro daquele imponderável espaço delimitado pelas rédeas da Mula
Tá. Enquanto invocava cada vez mais alto a assistência e a presença de dezenas de
entidades umbrosas, chamando-as pelos nomes com voz roufenha, balançando-se em
espasmos ritmados, como numa cadência trêmula e vacilante, iniciou, na sequência,
uma sessão defumatória, contorcendo-se, assoprando dentro de uma pequena caçoula
para atiçar o braseiro, incinerando folhas secas de tabaco, açafrão, gengibre e... pó feito
a partir das folhas secas das mandrágoras, produzindo densa fumaceira esbranquiçada,
de odor quase agradável, levemente nauseabundo e sufocante.
Soprando-lhe aquele fumo em todas as direções do corpo, a Sacerdotisa das
Sombras, compenetrada na evolução sistemática do seu rito, tocou-lhe com uma das
mãos as partes íntimas, quase encostando o turíbulo quente nos grãos, ao que entre
hesitante e excitado com o toque, o rei, bem mais à vontade, não se acanhou nem se
inibiu, impossibilitando a pronta exibição de sua masculinidade. A reação normal, já
esperada pela feiticeira, não lhe obstaculou nem impediu o prosseguimento do trabalho.
Pegou a pomada feita com a mandrágora fêmea e untou-lhe o entorno das partes. O Rei,
não se contendo, deu vazão aos seus lascivos impulsos, instintivamente puxando contra
si a cabeça da feiticeira, suplicando-lhe que prosseguisse.
Sem se importar com o suplicatório do rei e resoluta nos seus procedimentos, a
feiticeira iniciou a parte do ritual que mais agradou ao rei. Lambeu seu corpo de baixo a
cima, passando a língua em todos os pontos besuntados com mel de abelhas e pomada
de mandrágora. Quase a perder os sentidos com tamanha excitação, Rei Albe já não
conseguia distinguir as linhas de fronteira entre realidade e fantasia, entre o ilusório e o
concreto, constituídos naquele palco de infindáveis estranhezas e mistérios, em que
nenhuma sensibilidade se esgotava, nenhum congresso de críticos conseguiria decifrar
em definitivo. Emitindo sonoros e profundos gemidos, implorava langoroso à feiticeira:
— Não para, não para, não para!
Ao que a feiticeira interrompeu:
— Não, para!
Mudando de procedimento, atirou em seu rosto o líquido viscoso e esverdeado
que deitara numa pequena terrina, como se precisasse trazê-lo de volta ao mundo dos
objetos materiais captados pelo sujeito consciente, mais ou menos à maneira de uma
máquina de transcender no tempo.
O Rei conformou-se com a contradita porque também fazia parte do trato
obedecer aos apelos e ordens da sacerdotisa. Assim, consumou-se o ritual do
lambe-lambe. Pegando a cesta de palhas com as frutas secas, a Sacerdotisa das
Sombras, toda arrepiada, visivelmente em transe, espalhou sobre elas o pó que fizera
com a mandrágora macho seca e ralada, recitando em tom audível, palavras que lia
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escritas num retalho de fibras de folha de bananeira. O rei ouvia, mas não sabia o que
significavam:
— Autumnalis oficinarum, eukaryota archaeplastida, plantae angiosperms
eudicots, core eudicots, asterids une, solanales, dues, solanaceae, trinus solanoideae,
mandragoraeae, mandragora! Une, dune, trinis, perfectus perfunctoris, perfumatoriae.
— A senhora aprendeu com quem essa ladainhazinha? – perguntou-lhe,
ironizando, depois de passada a fase da excitação. – Parecem umas coisas que Alzira
também diz quando está invocando...
— Quieto! Objetou.
A feiticeira deu de ombros, pegando aos punhados as frutas secas. Esfregava-as
por todo o corpo e tanto mais vigorosamente nas suas partes íntimas, declamando
palavras com rimas terminadas em ota, eta e ita retornando-as depois à cesta. O rei não
ouvindo completamente o que ela balbuciava, interrompeu o ritual, indagando:
— Por que passas nas tuas partes as frutas que Alzira deverá comer?
— Não me interrompa, nem faça perguntas. Agora é a sua vez de me lamber
dos pés ao pescoço. Vamos, comece logo!
Rei Albe, o Rico, com o estômago repugnando pelo efeito narcotizante das
poções que havia ingerido, refugou o cumprimento daquele apelo, para ele libidinoso,
desobedecendo o mandamento da feiticeira. Pulou imediatamente fora do círculo
delimitado no chão pelo bridão da Mula Tá. Tropeçou sobre algumas peças, chutou
outras para bem longe, espalhando toda aquela parafernália, umas para dentro outras
para fora do espaço dentro do bridão, até que se enroscou nele pelos pés e caiu.
A Sacerdotisa, debochada, interrompeu a ritualística com uma estrepitosa e
retumbante gargalhada, irônica demonstração de sua superioridade no comando daquela
feitiçaria. O rei, enfurecido, descontrolado e contrariado, levantou-se, vociferando
taxativo:
— Acabou-se a brincadeira. O que está feito, está feito. O que não está feito,
ficará por fazer. Dê cá minha cesta de frutas. Prefiro emprenhar minha Mula Tá do que
lamber xana de feiticeira nojenta e arrogante!
Num gesto rápido e preciso, Rei Albe, o Rico, sacou o punhal de prata cravado
sobre o desenho das linhas de suas mãos, no cento do círculo, agarrou a feiticeira pelos
longos cabelos, tosando-os de um golpe na altura das orelhas, atirando as aparas sobre
as brasas da fogueira que crepitavam ao lado.
Feiticeira Zuzu, humilhada, enraivecida com a injuriosa interrupção do seu
trabalho pelo Rei Albe, o Rico, voltou-se contra ele com indignada fúria, bradando
encolerizada, múltiplos impropérios de uma lista de esconjuros conhecida e
desconhecida, rogando-lhe pragas horrendas. A título de fechamento dos feitiços
inconclusos, sentenciou Rei Albe, amaldiçoando-o:
— Farás a besteira que disseste e atado pelos pés ficarás até morrer, pendurado
nas rédeas da tua própria Mula Tá!
Ao pronunciar o agourento vaticínio, o soturno Urutau piou pela segunda vez.
Ouvindo de novo o lúgubre e funesto arrulho do pássaro, Rei Albe, o Rico,
contra-atacou para ofender e ultrajar ainda mais a Sacerdotisa das Sombras:
— Sua feiticeira de merda, jamais terás o talento de tua mãe!
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Agarrando-a pelo que lhe restava de cabelos sacolejou, empurrando-a para
longe. Sem forças para reagir, a indefesa carocha, sentada no chão, só sabia chorar.
Catou os cacarecos, arremessando-os dentro da carroça com pouco cuidado. Jogou suas
poucas peças de roupas também na fogueira e falou consigo mesma:
— Meu filho haverá de me vingar. Vai acabar com tua maldita raça, seu
insolente.
— O que dizes, infeliz? – ameaçou-a.
— Nada, Senhor Rei. Nada que seja da vossa conta.
Pegando o relho de sua montaria, Rei Albe escorraçou-a debaixo de açoites.
Assustada, profundamente insultada, a jovem feiticeira partiu seminua do local,
praguejando, desejando que todas as esmeraldas do Rei Albe, o Rico, desaparecessem,
que nem ele, nem a mulher, nem o filho Calico pudessem criar descendentes para
usufruir daquele valioso tesouro; que o Rei Albe, o Rico, ainda fosse traído pela própria
rainha e que toda a parentela do rei fosse amaldiçoada. Deixando o rei sozinho com sua
besta, sua cesta de frutas passas e uma maldição em vias de se concretizar, esconjurou-o
e a toda sua descendência. Virou as costas ao lugar, balançando as rédeas de seu
pangaré, assoviando, deu o comando de partir. Nunca mais voltaria àquele local.
Aproximava-se de meia-noite. O Rei Albe, em contrapartida, enfurecido com o
atrevimento e a audácia da Feiticeira Zuzu, ficou por ali, lembrando-se das palavras da
carocha, maldizendo toda a sua linhagem, dos antepassados aos futuros descendentes,
após juntar de qualquer jeito seus ricos objetos e adereços, debaixo da
figueira-do-inferno. Sozinho, despido, ainda sob efeito do transe provocado pelas
poções de mandrágoras que ingerira, sentiu-se fraco, entorpecido, sem ânimo para
recompor-se. Resolvido a passar o resto da noite ali mesmo, teve vontade de novamente
olhar para suas preciosas esmeraldas, enterradas bem debaixo de seus pés, onde a
feiticeira, sem desconfiar de nada, realizara o indecoroso ritual; mas faltavam-lhe forças
e ferramentas adequadas para escavar o arenoso solo sob a frondosa figueira-do-inferno.
Desistiu de desterrar as maravilhosas pedras verdes tão bem escondidas, quatorze
palmos chão adentro, onde só ele, mais ninguém, sabia que estavam, pois que o servo
que abrira o buraco para enterrar e ocultar o tesouro jazia sepultado no mesmo local.
Em solitário estado de ânimo, sob a luz branca da Lua, no pino do firmamento,
colocou a cesta de frutas secas no chão, ao lado da sua estimada Mula Tá.
Encontrando-se meio zonzo, ainda confuso pelo efeito das poções e dos nauseantes
unguentos e pomadas que a Feiticeira Zuzu lhe besuntara as partes, das repetidas
inalações de fumaça das defumações a que se submetera, da prolongada sessão de
magia, faltava-lhe ânimo até para se vestir.
Súbito, animou-se, calculou que fosse meia-noite. Andou alguns passos, juntou
suas vestes. Foi buscar as rédeas da besta que, ao engastalhar nos seus pés, chutou-as
para longe. Com o bridão nas mãos, sentiu que o objeto estava magnetizado de uma
energia diferente. Imediatamente percorreu-lhe o corpo um arrepio forte, uma grande
excitação o dominou, estimulando-o. Abriu o bridão para colocá-lo na cabeça da mula.
Ao lançá-lo sobre o pescoço do animal para ajustar-lhe a cabeçada e a embocadura,
ouviu novamente o piar soturno do Urutau. Tomado de um frenesi, excitou-se mais
ainda e, num abrir e fechar de olhos, flagrou-se com o bridão na mão, enlaçado a uma
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encantadora mulher morena, de longa cabeleira negra, olhos verdes tais como suas
preciosas esmeraldas, nua em pelo, surgida do nada, pronta para realizar quaisquer dos
seus mais lascivos desejos e caprichos...
Atônito, incrédulo, mas extremamente agitado diante da inexplicada miragem
irresistivelmente encantadora, procurou com os olhos sua mula e não a viu. Olhou para
o lado, embaixo, a cesta com as frutas secas que a feiticeira passara esfregando-as no
corpo, no chão, estava vazia. A besta havia comido todas as frutas passas. O feitiço do
encantamento ao qual Rainha Alzira era destinatária, havia se materializado na Mula
Tá!
Aproveitando-se para extravasar toda sua lascívia, satisfazendo desejos
contidos pela renúncia deliberada da esposa aos prazeres carnais e à prolongada
abstinência sexual imposta pela viagem da rainha ao Elo Dourado, Rei Albe, o Rico,
julgou que tivesse reencontrado o paraíso perdido.
Arrependeu-se da forma rude e grosseira do tratamento que dispensara à
Feiticeira Zuzu e demoveu-se da ideia de expulsá-la do Reino de Avilhanas. Poderia até
pagá-la melhor, pensou. Mas, por prudência, não haveria de deixá-la saber que seu
feitiço funcionara, porque se alguém mais soubesse daquela mulher encantadora,
haveria de quebrar o encantamento, por pura inveja ou para destruir seus melhores
momentos de felicidade. Era bom demais para acabar. Aquele segredo jamais seria
compartilhado com quem quer que fosse. Além dele, a Mula Tá e o Urutau eram os
únicos cúmplices do extraordinário e fantasioso devaneio. Ah, a Lua cheia igualmente
testemunhara tudo.
Mergulhado e absorto na percepção do tempo, já lhe parecendo uma
eternidade, Rei Albe, o Rico, ouviu ao longe o cantar de um galo. Subitamente,
deparou-se montado, ainda despido, sobre a Mula Tá. Acercou-se de cuidados,
certificando-se de que estavam realmente a sós. Pegou suas vestes uma a uma, ajustou a
barrigueira do arreio da besta, mas instintivamente retirou-lhe o bridão da cabeçada,
deixando-a presa pelo cabresto apenas. Guardou as rédeas mágicas numa bruaca de
couro atada à sela, porque acreditava no poder de encantamento daquele objeto
magnetizado pelas magias das mandrágoras tão eficientemente calibradas pela Feiticeira
Zuzu.
Catou a cesta de frutas passas vazia e montou-se. Ouviu o derradeiro piado do
soturno Urutau. Estava de madrugada. Voltou ao Palácio das Esmeraldas como se
tivesse vivido um grande sonho. O Senhor Dugo, ainda de campana, percebeu quando o
Rei Albe, o Rico, chegou. Certificou-se apenas de que estava tudo bem e continuou no
posto, atento a todos os movimentos dentro e fora do palácio. O próprio rei, desarreando
a besta, recolocou todos os acessórios à estaqueira de onde foram tirados. Soltou a Mula
Tá no pasto. Dentre os objetos do arreamento só não voltou às estaqueiras o mágico
bridão de fios de ouro. Residia nele o secreto e misterioso condão responsável pelo
encantamento.
Senhor Dugo, de longe, observara tudo. Quando o Rei Albe se retirou, voltou à
baia e foi conferir os objetos do arreamento da mula. Notou falta do bridão de fios de
ouro. Inspecionou de bem perto o animal. Não lhe constatou pisaduras, nem marcas que
revelassem qualquer espécie de mau trato. Preferiu não fazer conjecturas, nem poderia
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fazer perguntas. Era melhor que o rei continuasse acreditando que ninguém o espionara.
Permaneceu alerta no seu posto, cumprindo dever de sentinela.