CONTANDO SOBRE A MULA SEM CABEÇA
No Salão da Rainha, no Palácio Fortaleza, confortável e amplo compartimento
com algumas paredes revestidas de seda bege com motivos florais em tons de
cor-de-rosa, Imperatriz Gônia compartilhava com Rainha Alimpa o longo relato de
Rainha Araci envolvendo o escandaloso e alhures misterioso suicídio de sogro, Rei
Albe, o Rico.
Rainha Araci explicara os motivos que impediram a vinda da sogra, Rainha
Alzira, ao majestoso casamento. Rainha Alimpa impressionara-se tão comoventemente
com o inusitado da narrativa que manifestara desejo de conhecer pessoalmente a Rainha
Alzira, seu neto bastardo, o menino Mulato, filho de Calico com a irmã de criação, Alba
Esmeralda. Prometeu voltar em outra oportunidade, senão para a festa de nascimento
dos príncipes Urucumacuã e Kurokuru para a celebração dos ritos de passagem dos
meninos à puberdade.
Parenta da Imperatriz pelo tronco familiar materno, a Rainha Araci era
sobrinha da Rainha Tarope, a Senhora Desaparecida, e do Rei Ofin, o Refinado. Era ela
quem melhor conhecia sobre o episódio que culminou no escandaloso suicídio do sogro,
o Rei Albe, o Rico, porque usufruía de afetuosa consideração e confiança devotada pela
Rainha Alzira.
Pelo tempo de seu casamento com o Rei Naldo, o Calico, quando veio habitar
o Palácio das Esmeraldas no Reino de Avilhanas, três meses antes de casar-se, seguindo
os costumes e a tradição daquela Corte, ouvira da própria sogra confidências
personalíssimas. Toda a extraordinária história do encantamento produzido com as
mandrágoras extraídas pela Bruxa Bizarra, mas executado pela Feiticeira Zuzu, até o
enforcamento do Rei Albe, o Rico; a fantasmagórica aparição da assombração da Mula
Tá, que se materializava como a Mula Sem Cabeça; o nascimento do menino Mulato,
filho de Alba Esmeralda com o adolescente Príncipe Calico; o sofrimento e a morte de
Alba Esmeralda após o parto do filho; e a excepcional metamorfose que a transmutou
no pássaro Albatroz. A tudo isso a Rainha Araci se referira, contando minuciosamente o
que conhecia. Sobre os inexplicáveis e aterrorizantes gemidos ouvidos nas noites de lua
cheia debaixo da figueira-do-inferno, no Bosque do Iludido, onde se consumara o
secretíssimo ritual de encantamento, Araci pouco sabia, mas já ouvira mais de três
caçadores falarem das mesmas coisas em tempos diferentes.
Embora já tivesse ouvido versões desencontradas do insólito surgimento da
Mula Sem Cabeça, circulantes pelos corredores do palácio, levadas e trazidas pela
criadagem, comentadas pela vassalagem, umas controvertidas, outras absurdamente
destoantes, os relatos da Rainha Araci deixaram perplexa a Rainha Gônia e ainda mais a
Rainha Alimpa.
O tratador dos cavalos contara ao Rei Médium que, na noite de lua cheia em
que se casaram, a Mula Sem Cabeça havia rondado pelas baias. Apesar de esse assunto
despertar curiosidade na maioria das pessoas, a Imperatriz pediu que a Rainha Araci
narrasse o acontecimento desde o princípio, sem desprezar pormenores para que a
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história ficasse completa, já que a Rainha Alzira não viera desta vez e ela intencionava
saber as particularidades do extraordinário episódio.
Rainha Araci discorreu pacienciosa sobre o episódio:
— Quando Calico nasceu, Rainha Alzira teve um parto sofrido por demais.
Sangrou muito. Por pouco não morreu de hemorragia. Recuperou-se tempos depois,
lentamente. Com medo de engravidar uma segunda vez, não queria mais cumprir
deveres conjugais. Rejeitava o marido sob pretexto de estar com dores de cabeça ou
porque estava sem apetite. Bem naquela época, rainha Olinda, mãe do Rei Médium,
irmã da Rainha Alzira, ficou grávida do segundo filho. Correu notícia de que não
gozava de boa de saúde, com riscos de perder a vida naquela gestação. Compadecida da
irmã, viu na oportunidade de visitá-la um jeito de se ausentar, escapando às veementes
investidas sexuais do marido. Rainha Alzira empreendeu demorada viagem ao Elo
Dourado. Ficou aproximadamente um ano longe de seu palácio, em Avilhanas. Rainha
Olinda não passou dos sete meses de gestação. Morreu de parto prematuro e seu bebê
não viveu mais que algumas horas. Rainha Alzira havia prometido ao Rei Pay que
cuidaria por um tempo do pequeno Príncipe Médium, ficando mais uns meses por este
reinado até o Rei Pay se recuperar das perdas da mulher e do filho.
— Foi nesse tempo que o Rei Albe procurou a Bruxa Bizarra? – quis saber
Rainha Gônia.
— Assim que Rainha Alzira se ausentou, Rei Albe, o Rico, decidiu encontrar
um jeito de solucionar a indesejável frigidez da mulher e acabar de vez com as crises de
alcova entre ambos. Secretamente, mandou o Senhor Dugo buscar e trazer ao Palácio
das Esmeraldas a Bruxa Bizarra. Em surdina, recebeu-a em audiência e encomendou
seus infalíveis obséquios. Deu-lhe algumas preciosas esmeraldas em troca de que
executasse algum feitiço, qualquer mandinga, um filtro, uma beberagem que acreditava
fazer despertar o amor ou produzisse efeitos mágicos, cujo resultado viesse acender
novamente o ardor e a paixão que Alzira perdera desde o nascimento de Calico.
— Essa parte eu já ouvi – atalhou a Imperatriz Gônia – conte-me o que
aconteceu depois que a Bruxa Bizarra morreu por causa das mandrágoras.
— Ah, mas eu nada conheço da história – comentou a Rainha Alimpa –, quero
ouvi-la completa.
— Então, conta tudo, vá... – concordou a Imperatriz Gônia.
— Até as partes proibidas? – indagou a Rainha Araci, ironicamente, como se
dependesse do consentimento das duas para revelar os trechos sórdidos, detalhes
sacrílegos e abomináveis do episódio.
— Essas partes, principalmente! – entusiasmou-se Rainha Alimpa.
— Conte tudo. Rainha Alimpa gosta de histórias fortes e picantes – Rainha
Gônia gracejou, encorajando Rainha Araci...
— Então, por favor, não se assustem, nem se escandalizem! – preveniu-as,
prosseguindo o caso:
— Com a demorada viagem de Alzira, Rei Albe, o Rico, sentiu-se demasiado
solitário. Porém sua prolongada ausência permitiu que ficasse mais à vontade para
trazer a Bruxa Bizarra, avó do Bruxo Neno, ao Palácio. Com Rainha Alzira presente, a
Bruxa Bizarra sequer se aproximaria, nem adentraria os portões do Palácio das
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Esmeraldas para se encontrar com ele. Rainha Alzira jamais admitiria que Bizarra
pisasse nas escadarias do palácio. Além disso, sempre que podia a intimidava repelindo
sua aproximação, porque também conhecia os mesmos rituais ocultos que Bruxa
Bizarra realizava. Por diversas vezes, ela mesma, Rainha Alzira, havia desfeito
encantamentos absurdos enovelados por Bizarra. Sem Alzira, portanto, o caminho
estava livre.
— Rei Albe, o Rico, contratou então os serviços encantatórios da Bruxa
Bizarra, em troca de doze das suas mais preciosas, fascinantes e cobiçadas pedras
verdes, pagando-lhe antecipadamente. Ninguém da vassalagem do Palácio das
Esmeraldas, além do Senhor Dugo, ficou ciente do verdadeiro objetivo da visita da
velha bruxa ao Rei Albe. Poucos dias depois que a Bruxa Bizarra veio ao Palácio das
Esmeraldas, chegou notícia de que morrera subitamente. Frustrado porque não
concretizara seu plano, Rei Albe, o Rico, ordenou que cremassem o corpo da bruxa, e
que sua jovem filha, feiticeira Zureta, a Sacerdotisa das Sombras, viesse ao palácio.
Queria que cumprisse o que havia empreitado com sua mãe, dando sequência ao
combinado já acertado antecipadamente. Feiticeira Zuzu, ciente do trato, assentiu com a
empreita, mas pediu ao rei que acrescentasse mais algumas das suas maiores pedras de
esmeraldas, dada a complexidade que o trabalho requeria.
— Como a Rainha Alzira ficou sabendo daquele combinado? Quem contou pra
ela? – inquiriu a Imperatriz Gônia.
— Rainha Alzira ficou sabendo de tudo assim que chegou de viagem –
continuou a Rainha Araci –, percebeu no marido comportamentos misteriosos. Em
princípio, ficou observando seus modos indiferentes nas relações e a frieza com que a
tratava, quando abordavam assuntos de alcova. Mais ainda quando envolviam interesses
do reinado. O que mais intrigou a Rainha Alzira foram as enigmáticas cavalgadas do
marido em noites de lua cheia e seu retorno sempre de madrugada, extenuado, cansado,
como se tivesse ido e voltado correndo de muito longe. Muito sagaz e observadora, ela
então pediu ao seu criado de confiança, o Senhor Dugo, o Feitor, que vigiasse o rei. O
que o Senhor Dugo descobriu motivou a Rainha Alzira a ir à casa da Feiticeira Zuzu, até
arrancar-lhe impressionante confissão, no decorrer de uma sova monumental,
ministrada pelo Senhor Dugo, o Feitor, a mando da rainha.
— Tudo o que a Sacerdotisa das Sombras executou na noite do lascivo e
sacrílego ritual celebrado entre ela, o Rei Albe, o Rico, e a Mula Tá, foi revelado a
poder de açoite. O que a feiticeira não explicara, porque não sabia, havia acontecido
depois que se retirara do local. Essa parte, segundo a Rainha Alzira, nem ao próprio
marido perguntara. Quis ela mesma ver o que sucedia. Não tardou, assim que o
flagrasse numa situação tão embaraçosa quanto inexplicável que, presumiu, de tão
envergonhado que ficou, enforcou-se, dependurado pelo próprio pé. Mas esta parte, a do
Enforcado de cabeça pra baixo, eu só vou contar mais adiante.
— A Sacerdotisa das Sombras, como era conhecida a Feiticeira Zuzu,
confessara, inclusive, pormenores grotescos da ritualística que submeteu o Rei Albe, o
Rico. Não se intimidou de revelar os desacertos que os levaram a brigar durante o
intercurso cerimonial. Ele obrigou a feiticeira à repetição de uma parte que ele gostou
sessenta e nove vezes. Quando a estrige refugou, negando-se a continuar, ele rudemente
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deu por encerrada a orgíaca sessão de magia, considerou o encantamento da cesta de
frutas secas por rematado. As frutas secas destinavam-se à Rainha Alzira, quem deveria
comê-las, mas pela arrogância do Rei Albe, foram sofregamente devoradas pela Mula
Tá.
— Como a feiticeira soube do resultado final do encantamento? – interessou-se
Rainha Alimpa.
— A Sacerdotisa das Sombras verdadeiramente desconhecia se o propósito do
encantamento se concretizara, pois interrompera o ritual deixando-o inconcluso, fugindo
enlouquecida, humilhada, aviltada pelo Rei Albe, o Rico. Rainha Alzira só tomou
conhecimento do que sucedia entre o Rei Albe, o Rico, e a Mula Tá, posteriormente
àquela noite, porque mandou o Senhor Dugo, o Feitor, vigiar as misteriosas cavalgadas
e os movimentos notívagos do marido. O próprio rei nada revelara, apenas provava
quão boas razões tinham seu procedimento como mera distração, escapadas fortuitas
justificadas como passatempo inocente para não a importunar, posto que não mais
desejasse recebê-lo como amante.
— Rainha Alzira soube pela feiticeira dos motivos que levaram os dois a se
desentenderem durante o ritual? – Gônia indagou.
— Sim. Rei Albe nunca conversou sobre o assunto. O que a feiticeira não
contou, Alzira descobriu por si mesma. O que fez Rei Albe e a Sacerdotisa das Sombras
se desentenderem foi a humilhação que ele impôs. Além de não ceder aos reclames da
carocha, escorraçou-a, surrando-a com o relho da montaria – explicou Rainha Araci.
— Uau! Que coisa doida! – exclamou Rainha Alimpa.
— Na verdade – prosseguiu Rainha Araci –, Rei Albe, o Rico, tão somente
encomendara à velha bruxa Bizarra, mãe da Feiticeira Zuzu e avó do Bruxo Neno, um
feitiço modesto, que utilizasse pomadas e poções de mandrágoras com o único
propósito de fazer a Rainha Alzira voltar a sentir por ele a mesma paixão dos tempos
passados; que reacendesse nela o desejo que tinha antes de Calico nascer, e que... ele
também se mantivesse viril como antes. Bruxa Bizarra não pôde, ela mesma, dar cabo à
empreitada e quem se incumbiu de dar sequência aos trabalhos foi a própria filha,
Feiticeira Zureta, que não era tão experiente nessas artes.
— A Feiticeira Zuzu marcou o encontro para realizar o pacto secreto no Vale
do Apertado, no Bosque do Iludido, às margens do rio Desconhecido, no local que
atualmente é o Claro da Gemedeira – confirmou Rainha Araci.
Rainha Araci confabulou que a Rainha Alzira não julgou correto pressionar o
próprio marido para lhe contar as ocorrências durante sua ausência. Conseguiu apenas
que ele próprio confirmasse as duas visitas que a Bruxa Bizarra e a Feiticeira Zuzu
fizeram ao Palácio das Esmeraldas naquele ínterim.
— Rainha Alzira conseguiu saber o que desconfiava, que o marido e a
feiticeira haviam tramado, porque a própria Feiticeira Zuzu contou. Porém o que
interessava mesmo, de verdade, à Rainha Alzira, o marido morreu sem lhe dizer – disse
Rainha Araci, sendo aparteada pela Imperatriz Gônia:
— Que segredo foi esse?
— Ela queria que ele indicasse o lugar onde havia escondido suas preciosas
esmeraldas, as tais que até hoje ninguém descobriu onde estão – respondeu Rainha
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Araci. – Porém o Rei Albe, o Rico, recusou-se a contar. Por isso, a Rainha Alzira
ordenou que o Senhor Dugo o seguisse secretamente, ocultando-se, para descobrir o que
ele tão fervorosamente lhe negaceava saber.
— Então, ninguém sabe ainda onde o Rei Albe, o Rico, guardou seu melhor
tesouro de esmeraldas? – perguntou Rainha Alimpa.
— Acho que não. Rainha Alzira não faz a mínima ideia de onde o marido o
escondeu. Acredita também que ele não revelou a ninguém antes de se suicidar. Bom,
ainda tem coisas que a rainha também não me contou. Vamos, está na hora de
assistirmos à Corrida Numpessó. Depois a gente fala mais deste assunto.
— Mas a história não termina aí, acrescentou a Imperatriz Gônia.
— Não mesmo – emendou Rainha Araci – a partir deste ponto, começa uma
outra história...
— Por favor – solicitou Rainha Alimpa – , conte-me o que ainda está faltando.
— Depois que voltarmos da Corrida Numpessó.